Rafa Santos, Conjur

Uma denúncia que afronta garantias constitucionais, a liberdade de imprensa e a democracia. Assim pode ser resumida a impressão causada pela peça acusatória do procurador da República Wellington Divino de Oliveira contra o jornalista Gleen Greenwald. 

A denúncia se baseia em uma conversa que teria acontecido após a imprensa divulgar a invasão no celular do atual ministro da Justiça, Sergio Moro.  No diálogo, Luiz Molição — considerado porta-voz do grupo com jornalista — teria pedido orientação sobre o que fazer. Glenn teria indicado que as mensagens já repassadas a ele deveriam ser apagadas, para que o jornalista não fosse ligado à obtenção do material.

Para o MPF, essa conversa caracteriza “clara conduta de participação auxiliar no delito, buscando subverter a ideia de proteção a fonte jornalística em uma imunidade para orientação de criminosos”.

Pablo Valadares / Câmara dos Deputados

Para especialistas ouvidos pela ConJur, no entanto, as lacunas jurídicas da denúncia são claras. Para começar, o procurador (aliás, o mesmo que denunciou o presidente da OAB por críticas a Moro) passou por cima de uma liminar do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que proibia “atos que visem à responsabilização do jornalista Glenn Greenwald pela recepção, obtenção ou transmissão de informações publicadas em veículos de mídia”.

Além disso, os advogados também lembraram que Glenn não é sequer investigado na operação, e destacaram que a forma como a conversa foi usada para justificar a denúncia é um erro grave de interpretação que “beira o abuso de autoridade”. 

Para o jurista e colunista da ConJur, Lenio Streck, a denúncia tem elementos que caracterizam a prática de lawfare — uso do Direito como instrumento de perseguição política. “Uma denúncia que, segundo consta, está baseada em uma gravação – que não diz nada de concreto contra Glenn — e o denunciado nem estava no polo passivo da investigação — inquérito, parece a prática de lawfare. Aliás, se Glenn não era investigado, como aproveitar gravação contra ele? Mistério!”, comenta.

Entendimento parecido com o advogado Alberto Zacharias Toron. O criminalista acredita que o Ministério Público Federal não apenas se excedeu, mas fantasiou. “O fato de o Glenn ter tentado preservar a fonte pedindo para apagar uma determinada mensagem não serve para colocá-lo no polo passivo de uma ação penal”, diz.

Toron ainda lembra que a liminar do ministro Gilmar Mendes proibindo a responsabilização do jornalista. “Isso que eles encontraram, e que legitimaria a denúncia, beira o abuso de autoridade no poder de denunciar”, argumenta.

Segundo o jornal Folha de S.Paulo, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que teve a liminar desrespeitada, classificou a denúncia como “um ato que visa à responsabilização do fundador do site The Intercept Brasil”.

O ministro Marco Aurélio Mello, disse, também à Folha, que a denúncia contra Glenn é perigosa. “Toda iniciativa que fustigue jornalista, que fustigue veículo de comunicação tem que ser pensada muito antes de implementada. É o caso da denúncia, julgamento. Tem que sopesar, analisar valores e decidir qual é o valor que deve prevalecer”, diz.

Criminalização do jornalismo

O advogado criminalista, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, afirma que atitudes como a do procurador Wellington Divino de Oliveira tiram a credibilidade do MP e têm a clara intenção de restringir a liberdade de imprensa. “Neste caso, a inacreditável tentativa de responsabilização criminal parece ser pautada por motivação política ou ter sido feita como represália à atividade profissional desempenhada por esse importante jornalista no caso conhecido como Vaza Jato, haja vista que a denúncia não apresenta os mínimos requisitos técnicos para sua admissão”, defende. “Mais uma vez, o que se espera do Poder Judiciário é uma postura técnica e absolutamente imparcial ao analisar a denúncia. Assim como um juiz não pode ser parcial e instrumentalizar o Poder Judiciário também o Ministério Público tem que ter a Constituição como norte.”

Kakay acredita que denúncias como essa minam a credibilidade do MP – YouTube / Reprodução

Para o advogado Thiago Turbay, a situação revela os traços antidemocráticos que marcaram o país durante a “lava jato”. “Apela-se para confabulações simbólicas, com a nítida tentativa de demonizar o jornalismo livre e amenizar a conduta ilegal revelada pelo The Intercept. A narrativa do Ministério Público se aparta dos fatos para fomentar simulações e alucinações. A conduta do jornalista, tampouco, configura os crimes capitulados. É uma barbeiragem jurídica propositada e que configura abuso do poder de punir, devido à clara ausência de justa causa para oferecimento de denúncia”, argumenta.

O criminalista Conrado Gontijo também classifica a denúncia conta Glenn como um verdadeiro absurdo jurídico. “A narrativa acusatória deturpa o teor das conversas mantidas entre o jornalista e as suas fontes, para inseri-lo no contexto das práticas delitivas. A interpretação dada aos diálogos, na minha compreensão, é totalmente descabida é incompatível com as mensagens referidas na denúncia. Essa denúncia pode representar, inclusive, violação à decisão do Supremo, que havia assegurado a Gleen Greenwald o direito de exercer de forma livre a atividade jornalística”.

Abuso de autoridade

Gontijo descarta, no entanto, a possibilidade de enquadrar o procurador na lei de abuso de autoridade, considerados apenas os elementos existentes até agora. “A denúncia é descabida, viola direitos fundamentais e, por isso, entendo que deva ser rejeitada. Mas não vejo a possibilidade de sancionamento criminal do procurador, consideradas as informações existentes no momento, com base no artigo 30 da Lei de Abuso de Autoridade, segundo o qual é crime “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente”, explica

David Metzker, por sua vez, acredita que a denúncia pode, sim, ser enquadrada como abuso. “Me estranha o fato de denunciá-lo mesmo afirmando que não pôde investigar em razão da liminar. Se não houve investigação, não há fundamentos para imputá-lo crimes. Se houve investigação, há uma clara afronta a decisão liminar do STF, exarada pelo Ministro Gilmar Mendes”, diz.

Fernando Castelo Branco, criminalista e professor da pós-graduação da EDB, acredita que poderia haver um abuso de autoridade se ficasse demonstrado que o Ministério Público incluiu o nome do jornalista com o intuito específico e determinado, por exemplo, de coibir e constranger a imprensa.”O que me chama mais a atenção é de classificar essa conduta de flagrante coautoria , numa pretensa organização criminosa. Isso tem sido recorrente por parte do MP, tentando, ao meu ver, trazer um destaque para algo que está muito distante , pela classificação doutrinária e jurisprudencial, do conceito de organização criminosa”, comenta.

Entidades de classe

Quem também condenou o episodio foi a Ordem dos advogados do Brasil. Em nota, a OAB afirma que acompanha o caso com grande preocupação. “A denúncia descreve fato que não pode ser considerado crime. A participação em qualquer delito exige instigação ou colaboração efetiva para sua prática, e nenhuma das mensagens do jornalista incluídas no expediente do MPF indica qualquer desses comportamentos. A denúncia, portanto, criminaliza a mera divulgação de informações, o que significa claro risco para a liberdade de imprensa”, diz trecho da nota.

“Um atentado à Constituição Brasileira, um desrespeito ao STF e a Polícia Federal, bem como uma tentativa grotesca de manipulação, para tentar condenar um jornalista”.

Associação Brasileira de Imprensa

Grupo Prerrogativas também se pronunciou, repudiando com veemência a denúncia do MPF. “A denúncia ataca violentamente a liberdade de imprensa, na medida em que busca a responsabilidade criminal de um jornalista em razão de sua atividade profissional. Deturpa o conteúdo da prova arrecadada no curso das investigações e promove ilações completamente fantasiosas. Os esforços para caracterizar Glenn Grenwald como auxiliar ou mentor dos (supostos) hackers esbarram em qualquer critério de boa-fé. Não há leitura possível dos diálogos que comporte esse tipo de interpretação”.

“É ainda muito preocupante que o Ministério Público Federal se insurja contra a autoridade da medida cautelar concedida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 601, do Supremo Tribunal Federal, que protegeu o exercício da liberdade de imprensa e, pelo menos até o dia de hoje, garantiu que Glenn Grenwald não fosse criminalizado em razão do exercício de atividades jornalísticas. Esta acusação é uma escalada perigosa na ascensão do autoritarismo, além de consagrar o uso político do processo penal e a fragilidade da nossa democracia”, afirmaram, em nota.

Quem também se manifestou foi a Associação Brasileira de Imprensa. Em nota, a entidade disse que o episódio representa “um atentado à Constituição Brasileira, um desrespeito ao STF e a Polícia Federal, bem como uma tentativa grotesca de manipulação, para tentar condenar um jornalista”.

O texto, assinado pelo presidente da entidade, Paulo Jeronimo de Souza, conclama a Justiça Federal a rejeitar a denúncia da mesma forma que, negou outra recentemente feita contra o presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz — “Por coincidência feita pelo mesmo procurador da República”.