Ives Gandra da Silva Martins

Celso Bastos e eu comentamos, entre 1988 e 1998, a Constituição do Brasil em 15 volumes e em aproximadamente 12 mil páginas, pela Editora Saraiva. Foram vendidos, à época, 150 mil exemplares. Paramos de atualizá-los com a morte prematura de Celso, visto que tínhamos dividido os diversos títulos entre nós. Celso comentou os Títulos I, II e VII. Eu comentei os Títulos V, VI e IX e o ato complementar das disposições transitórias. Os Títulos III, IV e VIII dividimos entre nós.

Como participamos como convidados em audiências públicas na Constituinte e mantivemos, os dois, permanente contato com o relator, senador Bernardo Cabral — que nos consultava repetidas vezes e que desempenhou um papel relevantíssimo na promulgação da Lei Suprema, assim como, em menor número de vezes, o presidente, deputado Ulisses Guimarães —, conhecíamos por dentro o processo constituinte, não nos furtando a prestar contribuição doutrinária a muitos dos constituintes e até mesmo ao relator.

Eu, pessoalmente, cheguei, a pedido de 66 constituintes, a escrever um pequeno livro intitulado “Roteiro para uma Constituição”, publicado pela Editora Forense.

Faço essa introdução para esclarecer às pessoas que citam minha interpretação do artigo 142 por “ouvir dizer” e sem “lê-la” que a fazem com fantástica distorção de meu pensamento.

Escrevi no quinto volume dos referidos comentários, que foi veiculado em 1997, à página 167, que: “Por fim, cabe às Forças Armadas assegurarem a lei e a ordem sempre que, por iniciativa de qualquer dos poderes constituídos, ou seja, por iniciativa dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, forem chamados a intervir.
Nesse caso, as Forças Armadas são convocadas para garantir a lei a ordem, e não para rompê-las, já que o risco de ruptura provém da ação de pessoas ou entidades preocupadas em desestabilizar o Estado”.

Em palestras posteriores, ao explicitar meu pensamento, inclusive nas aulas para a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, esclareci que, se houvesse um conflito entre o Poder Executivo e qualquer dos outros poderes com claro ferimento da Lei Maior, sem outro remédio constitucional, o presidente não poderia comandar as Forças Armadas na solução da questão, se fosse o poder solicitante, e, pois, parte do problema.

Nessa hipótese, caberia aos comandantes das Três Armas a reposição da lei e da ordem.

Por fim, sempre expus em palestras que a reposição da lei e da ordem seria pontual, isto é, naquele ponto rompido, sem que as instituições democráticas fossem abaladas.

É interessante notar que o título que cuida dos três poderes é denominado de “Organização dos Poderes”, mas, na Carta da República, o título que cuida das Forças Armadas é denominado “Da defesa do Estado e das instituições democráticas”, vale dizer, se os poderes deixarem de ser harmônicos e independentes e colocarem em risco a democracia com invasões de competência uns dos outros, para sustar tais invasões um dos poderes atingidos pode solicitar a intervenção apenas para sustar a invasão, e para mais nada. 

Por essa razão, o saudoso desembargador federal e constitucionalista, meu colega de turma, Aricê Amaral dos Santos, denominava o Título V de “regime constitucional das crises”, isto é, algo colocado na Lei Suprema para nunca ser usado, se o bom senso democrático prevalecesse entre os poderes.

O Poder Judiciário não pode legislar, por força do artigo 103, §2º. O Poder Legislativo deve zelar pela sua competência normativa perante o Judiciário e Executivo, conforme determina o artigo 49, inciso XI. Seria curioso se, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal invadisse a competência normativa do Parlamento e, para zelar por ela, tivesse o Congresso Nacional de recorrer ao próprio poder invasor para sustar sua ação!!! As Forças Armadas só podem atuar, pontualmente, para repor a lei e a ordem por solicitação de qualquer dos três poderes (artigo 142, caput).

Estão os três dispositivos assim redigidos:

“Artigo 103  ………..
§2º. Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.

“Artigo 49  É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
…………….
XI 
 zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes;……….”.

“Artigo 142  As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Espero que o diálogo e o bom senso dos membros dos três poderes nunca leve o país a necessitar dessa intervenção e que atuem como quis o constituinte ao colocar no artigo 2° da Constituição que: 

“Artigo 2º — São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Essa é a minha opinião e, apesar do respeito que tenho a todos os que dela divergem, não tenho razão para modificá-la.

_ Ives Gandra Martins

professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifeo, Unimeo, do CIEE-SP, das escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), superior de Guerra (ESG) e da magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (ARG), San Martin de Porres (PER) e Vasili Goldis (ROM), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (ROM) e da PUC-PR e RS, e catedrático da Universidade do Minho (POR); presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio (SP); ex-presidente da Academia Paulista de Letras e do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo).