Folha de São Paulo

Nelson Jr. / STF

O que Toffoli decidiu?

O presidente do Supremo, Dias Toffoli, decidiu suspender, a nível nacional, investigações criminais que envolvam relatórios que especifiquem dados bancários detalhados sem que tenha havido autorização da Justiça para tal — ainda que o inquérito tenha outros elementos que o embasem.

A decisão atinge inquéritos e procedimentos de investigação criminal (tipo de apuração preliminar), de todas as instâncias da Justiça, baseados em informações de órgãos de controle —como Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), Receita Federal e Banco Central. A determinação tem potencial de afetar desde casos de corrupção e lavagem de dinheiro, como os da Lava Jato, aos de tráfico de drogas. 

O que seriam “dados detalhados”?

O STF já havia autorizado o acesso a operações bancárias sem autorização judicial, mas, no entendimento de Toffoli, o plenário da corte decidiu que as informações deveriam se limitar à identificação dos titulares e do valor movimentado. Se envolvesse mais que isso, portanto, exigiria decisão da Justiça. 

Um exemplo são as movimentações do caso Flávio Bolsonaro, que contou com ao menos seis relatórios do Coaf antes da autorização judicial para quebras de sigilos fiscal e bancário dos investigados. Havia documentos que detalhavam, por exemplo, data, agência bancária e horários de dezenas de saques e depósitos realizados (abaixo, leia mais sobre o caso).

Até quando as investigações estão suspensas?

Até que o plenário do STF decida se é legal que dados bancários e fiscais obtidos pela Receita Federal e órgãos de controle sejam enviados ao Ministério Público para fins penais sem necessidade de autorização da Justiça.

Como esse caso foi parar no STF?

A corte analisa o recurso do Ministério Público Federal (MPF) contra uma decisão do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) que anulou uma ação porque esta envolvia dados obtidos pela Receita e compartilhados com o Ministério Público sem prévia autorização judicial —o que o MPF alega ser legal. O julgamento, a princípio, está marcado para o dia 21 de novembro.

O que isso tem a ver com Flávio Bolsonaro?

A decisão de Toffoli atendeu a um pedido da defesa do senador feito no âmbito de um processo (um recurso extraordinário) que já tramitava no STF, relativo a um terceiro (o caso do TRF-3). O ministro decidiu pela paralisação de apurações em geral, o que inclui a investigação realizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro que envolve Flávio e seu ex-assessor Fabrício Queiroz. Isso porque a investigação começou com o compartilhamento de informações do Coaf e só depois a Justiça fluminense autorizou a quebra de sigilo bancário.

Quais os argumentos de Flávio?

A defesa do senador alegou ao STF que, por solicitação do Ministério Público, o Coaf se comunicou diretamente com as instituições financeiras a fim de detalhar informações enviadas pelos bancos. A medida foi vista como um “atalho” à necessidade de autorização judicial para quebra de sigilo bancário.

Em outras oportunidades, Flávio já havia tentado anular a investigação, tanto no Supremo como na Justiça do Rio, mas teve os pedidos negados. 

Quais as justificativas de Toffoli para suspender os inquéritos em âmbito nacional, e não apenas o do senador? 

Toffoli alega a necessidade de evitar insegurança jurídica. Ele afirmou que a medida tem o objetivo de evitar que, no futuro, quando o STF decidir sobre a questão, processos venham a ser anulados.

Como o Ministério Público justifica o uso de relatórios do Coaf em inquéritos sem que houvesse decisão judicial autorizando seu envio?

O Ministério Público afirma que os tribunais superiores já se manifestaram a favor do uso de relatórios do Coaf para instauração de inquérito. Promotores citam decisão em que o ministro do STF Luís Roberto Barroso diz que “não há nulidade em denúncia oferecida pelo Ministério Público cujo supedâneo [base] foi relatório do Coaf, que, minuciosamente, identificou a ocorrência de crimes vários e a autoria de diversas pessoas”.

Apontam ainda decisão da 5ª Turma do STJ na qual os ministros decidiram que “a requisição direta de informações pelo Ministério Público ao Coaf sobre a existência de movimentação atípica independe de prévia autorização judicial”.

Qual o impacto da decisão de Toffoli? Pode paralisar a Lava Jato?

A decisão atinge inquéritos e procedimentos de investigação criminal (tipo de apuração preliminar), de todas as instâncias da Justiça, baseados em informações de órgãos de controle. Também impacta processos que já passaram da fase do inquérito.

Não é possível calcular de imediato o impacto porque será preciso que as autoridades analisem cada caso. Se a defesa de um investigado entender que houve compartilhamento dos dados de seu cliente fora dos parâmetros descritos por Toffoli, poderá requerer a suspensão.

É comum na Lava Jato do Paraná, por exemplo, que os relatórios do Coaf sejam anexados após a ordem judicial de quebra de sigilo, o que deixaria os processos de fora do escopo da decisão de Toffoli.

Em nota, as forças-tarefas da Lava Jato afirmaram que, embora não consigam quantificar quantas investigações serão afetadas, consideram a decisão prejudicial para apurações de corrupção e lavagem de dinheiro. 

“A suspensão de investigações e processos por prazo indeterminado reduz a perspectiva de seu sucesso, porque o decurso do tempo lhes é desfavorável. Com o passar do tempo, documentos se dissipam, a memória de testemunhas esmorece e se esvai o prazo de retenção pelas instituições de informações telefônicas, fiscais e financeiras”, diz o texto.

Que outros casos podem ser afetados?

Segundo o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Poggio Smanio, a medida pode paralisar investigações relacionadas à lavagem de dinheiro que envolvem a facção criminosa PCC. À BBC ele afirmou que existem várias ações do Ministério Público que buscam asfixiar recursos que financiam organizações criminosas e que é comum que elas sejam baseadas em comunicados do Coaf e da Receita Federal.

No início do ano, com a reforma ministerial, o governo Jair Bolsonaro (PSL) transferiu o Coaf para o Ministério da Justiça, comandado por Sergio Moro. A justificativa era que, com a medida, o órgão poderia se envolver mais no combate à corrupção e na asfixia financeira ao crime organizado. No fim de maio, contudo, o Congresso devolveu o Coaf ao Ministério da Economia

O que está sendo investigado sobre Flávio Bolsonaro? 

O Ministério Público apura a “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro quando ele exercia o mandato de deputado estadual na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Nesse tipo de esquema, servidores devem devolver parte do salário para os deputados. O MP-RJ ainda não identificou o possível destino do dinheiro, apenas levantou suspeitas de que ele era repassado para as lideranças do gabinete.

Qual a origem dessa investigação? 

A apuração começou há mais de um ano e meio, com o envio ao MP-RJ de um relatório do Coaf apontando movimentações atípicas de R$ 1,2 milhão na conta bancária de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio na Alerj. Além do volume movimentado na conta de Queiroz, que era apresentado como motorista de Flávio, chamou a atenção a forma com que as operações se davam: depósitos e saques em dinheiro vivo, em data próxima do pagamento de servidores da Assembleia.

Quais os possíveis crimes apontados pelo MP-RJ?  

Peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Há três núcleos investigados, segundo a Promotoria: um que nomeava os assessores, outro que recolhia e distribuía parte dos salários dos servidores e o terceiro, composto por aqueles que aceitavam o compromisso de entregar parte de suas remunerações. 

O que é o Coaf e como ele atua?

O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) é um órgão de inteligência, subordinado ao Ministério da Economia, que atua contra a lavagem de dinheiro. Ele recebe informações de instituições financeiras sobre operações consideradas atípicas, como transações de quantias significativas por meio de conta até então pouco movimentada ou mudança repentina e injustificada na forma de movimentação de recursos.

O órgão está sob a alçada do Ministério da Economia. 

Qual a diferença entre um relatório do Coaf e a quebra de sigilo bancário ou fiscal?

O Coaf aponta apenas as movimentações consideradas suspeitas: alto volume movimentado ou uso constante e fracionado de dinheiro em espécie, por exemplo. Essas transações são informadas ao Coaf por funcionários das instituições financeiras (como gerentes de banco).

A quebra de sigilo, por sua vez, permite que os investigadores vejam toda a movimentação bancária, mesmo aquelas que não levantaram suspeita. Eles recebem um extrato completo e fazem os cruzamentos que consideram necessários para esclarecer o crime investigado. Já a quebra de sigilo fiscal diz respeito a informações relacionadas a patrimônio, dívidas e rendimento, como a declaração do Imposto de Renda. 

Em alguns casos, uma movimentação que não se enquadra como suspeita pelos critérios do Coaf é relevante para a investigação.