Folha de São Paulo

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Imaginemos que depois de anos de licitações suspeitas, visando beneficiar determinadas empresas, alguém que conhecia os fatos resolve romper o silêncio e procurar a polícia.

Isso permite o desenrolar das investigações e, ao final, a apresentação do relatório com o indiciamento criminal. O Ministério Público examina as provas e decide acusar os responsáveis pelos crimes, oferecendo a denúncia. Mas, semanas antes, diante da relevância do caso, em atenção ao princípio constitucional da publicidade e da legítima pressão por informações vindas da imprensa e da sociedade civil, delegado e promotor decidem conceder entrevistas (o caso não era sigiloso), anunciando o indiciamento do suspeito após documentos comprometedores terem sido encontrados em sua casa —o que os levou a ter a convicção técnica sobre a sua responsabilidade. Ambos quiseram prestar contas à sociedade.

O juiz estuda o caso e conclui ser razoável e admissível a denúncia oferecida, até porque, ao longo da instrução processual, ao denunciado deverá ser assegurado o seu amplo e fundamental direito de defesa. Recebe-a, e o acusado, o prefeito da cidade, ao dela tomar conhecimento, contrata o melhor advogado da região para impetrar um habeas corpus perante o tribunal, com pedido liminar para trancar o processo por falta de justa causa.

O desembargador relator, no exercício de suas prerrogativas e liberdade de convicção, analisa o caso e diverge da interpretação do MP e do juiz. Ele tem outra visão sobre os fatos e decide conceder a liminar requerida, trancando a ação penal.

A análise desta sequência de acontecimentos é corriqueira dentro dos princípios do devido processo legal, duplo grau de jurisdição e ampla defesa —assim como as entrevistas, cenas normais nos tempos da sociedade de informação, da Lei de Acesso à Informação Pública e do princípio basilar da transparência.

A partir da semana que se passou, por mais surreal que isso possa parecer, as zelosas condutas do promotor, do delegado e do juiz que recebeu a acusação são definidas como crimes pelos artigos 30 e 38 da lei 7.596, a chamada nova lei de abuso de autoridade, aprovada em poucos minutos na Câmara, sem prévios debates naquela Casa, afrontando os artigos 93 e 95 da Constituição Federal e tratados internacionais dos quais o Brasil é subscritor.

Entendemos que o Estado não pode fazer uso indiscriminado do seu poder punitivo ou se valer de poderes persecutórios ou policiais que ameaçam a cidadania. Mas o texto, aprovado nas paixões das circunstâncias políticas, não observou aspectos técnicos vitais, que permitem subjetividades indesejáveis e inadmissíveis na aplicação da lei, as quais, na prática, não permitirão o que a sociedade espera: o combate à corrupção nos limites legais e o respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Queremos mais estabilidade e ética no funcionamento de nossas instituições e, ao mesmo tempo, impedir a tirania e o abuso por aqueles que detêm o poder. 

No entanto, não da maneira como o texto foi redigido, com seletividade de alvos —Ministério Público, Judiciário e polícia—, tangenciando os parlamentares, com tipos abertos geradores de insegurança jurídica e margem a arbítrios. 

No sistema de freios e contrapesos, cabe ao presidente da República exercer seu poder de veto para que outra lei —equilibrada, técnica e que alcance a todos— seja elaborada. É o que a sociedade espera.Rodrigo de Pinho Bertoccelli

Rodrigo de Pinho Bertoccelli

Professor e advogado nas áreas de direito público e compliance e diretor-executivo do Instituto Não Aceito Corrupção