Georges Abboud - Conjur

  • * Georges Abboud

De tempos em tempos, ressurgem algumas questões aparentemente “novas”, com as quais o Supremo Tribunal Federal tem de se confrontar. Questões a respeito das quais tudo já foi dito e que passaram pelo crivo implacável da história.

Uma dessas questões é a recente querela surgida no bojo da Ação Penal 969-DF, em que o relator ministro Gilmar Mendes acolheu pedido da defesa e formulou questão de ordem dirigida ao ministro presidente do STF. Nela, pedia-se a revogação da decisão que houvera suspendido o julgamento da AP, dado o empate na votação. Diante disso, a questão de fundo pode ser posta desta forma: o empate na votação em ação penal beneficia ou não o réu?

Paralelamente, vale lembrar, a defesa dos réus em questão alegou nulidade no julgamento das APs 973 e 974, uma vez que a dosimetria da pena ocorreu sem a participação dos ministros, cujos votos foram absolutórios.

Com relação a esse último ponto, entendeu o ministro presidente que: 1) a proclamação do resultado na sessão de julgamento em que foram fixadas as penas teria gerado preclusão, nos termos do CPP 571 VIII; e 2) a jurisprudência do STF, firmada a partir da AP 470, teria revelado existir “absoluta incongruência e mesmo paradoxo num voto que, há um só tempo, absolva o réu e imponha pena ao absolvido“.

A respeito da questão mais “pujante” de o empate resultar ou não em absolvição do réu, o ministro presidente entendeu incabível a aplicação analógica dos dispositivos que, em sede de Habeas Corpus e recursos em HC, determina a proclamação do resultado mais favorável ao réu.

Segundo seu entendimento, o procedimento do HC e de seus respectivos recursos ensejam resolução mais célere e consubstanciam exceções no sistema processual penal brasileiro. Em outros casos — entre os quais se inclui a ação penal —, o ordenamento daria preferência à obtenção do voto de desempate, devendo, portanto, a AP 969-DF permanecer suspensa até que um novo ministro tome assento na corte.

Tratando do assunto, Lenio Streck foi, como de costume, cirúrgico: “Não é que ela (a ‘tese’ do in dubio pro societate) não tem guarida na CF: ela não tem é guarida na civilização ocidental”.

Nesse sentido, a correção da posição esposada pelo ministro Luiz Fux poderia ser por nós subscrita a partir de diversas perspectivas: aplicação direta da Constituição Federal, interpretação conforme a Constituição, inconstitucionalidade dos artigos do regimento interno que condicionam a proclamação do resultado à obtenção de alguma maioria sem que o empate beneficie o acusado, entre tantas outras saídas típicas dos constitucionalistas.

Poderíamos, ainda, recorrer à relação entre Direito e moral e nos apropriarmos das palavras de Nietzsche, para quem “(j)ulgar e condenar moralmente é a forma favorita de os espiritualmente limitados se vingarem daqueles que o são menos (…)”. No caso jurídico, a limitação espiritual é, também e acima de tudo, uma limitação hermenêutica em relação à Constituição. Mas deixemos a filosofia de lado por ora.

Vamos à política. Tampouco nos valeremos da clara cooptação do Direito por ela. Afinal, a política — na figura dos encarregados pela condução de um novo ministro — detém em suas mãos o momento e o resultado de julgamentos que deveriam ser conduzidos pelo Direito. Jürgen Habermas indagaria: pois qual a legitimidade da política que se vale de um Direito que está à sua disposição? Deixemos também a política.

Afinal, seguiremos Streck: se um de nossos mais ilustres constitucionalistas preferiu a via do argumento civilizacional a despeito dos tantos argumentos dogmáticos de que poderia ter se valido, entendemo-nos autorizados a fazer o mesmo.

O caso em questão trata de crimes contra o patrimônio público; só isso já seria o suficiente para incensar as massas punitivistas em favor de uma aplicação eficienticista da “tese” de que, na dúvida, decide-se em favor da sociedade. Afinal, não teria sido ela a maior prejudicada pelos tais crimes?

Parece fora de qualquer dúvida que, no Estado constitucional, a liberdade é a regra, a presunção; a punição, a privação da liberdade — atuação ostensiva do Estado — é que precisa ser justificada, porque, frente ao Estado, não há qualquer indivíduo poderoso o suficiente.

Alegoricamente, poderíamos dizer que a soberania — uma das características principais dos Estados modernos — representa uma versão secularizada de Deus: não há poder interno ou externo que lhe seja superior; e o Estado ministra quase que exclusivamente o Direito.

Perguntamos, então: quão forte é o Direito? Bom, para responder a essa pergunta recorreremos a uma importante interpretação do Novo Testamento: Cristo foi crucificado, morto e sepultado pelos homens.

Para Agamben, o julgamento e a crucificação de Cristo não seriam, propriamente, um processo e uma pena. São fatos ainda indefiníveis e inomináveis. Cristo, na narrativa bíblica, foi processado, mas não julgado; apenado, mas não condenado. Segundo o filósofo italiano: “(q)ue haja um processo mas não um julgamento é, na realidade, a mais severa objeção que se possa levantar contra o direito, se é verdade que o direito é, em última instância, processo, e este, em essência, julgamento”.

Não há indivíduo que faça frente ao Estado. Esse é um fato histórico a respeito do qual não há fundamento jurídico, regra ou um princípio — para aqueles que ainda veem na distinção alguma valia — que sirva de justificação suficiente.

O Leviatã — para seguir na metáfora bíblica e ancorar em Hobbes – também precisa estar limitado. Não se pode prever que, por força de sua grandeza, haja uma diluição das arestas que o circunscrevem. Deixemos a metáfora como metáfora, enfim. O Leviatã não impõe, tampouco está morto: é preciso uma relação de forças que mantenha a todos sob a égide constitucional. Do contrário, transforma-se o Estado em uma estrutura vazia que, seguindo o quanto decidido nessa questão de ordem, pode submeter os homens a um julgamento infinito, um processo que não termina, confirmando os paradoxos imaginados por Franz Kafka no início do século passado.

Se conquistas civilizatórias já não servem de baliza à interpretação do direito, talvez devamos abandonar de vez também os princípios. Por essa razão, rejeitar que o empate beneficia o réu, independentemente do procedimento, é abandonar uma conquista civilizatória do constitucionalismo. Conquista que não pode ser vista sob viés degenerado de impunidade ou “bandidolatria”, pelo contrário, trata-se se ponto essencial ao devido processo penal: in dubio pro reo. Ou seja, uma ficcional tentativa equiparação de forças entre poder punitivo do Estado e o cidadão.

Abandonamos, por um momento, a filosofia moral e a política. Tentamos nos ater ao Direito. Mas o regimento interno nos obriga a retornar à política, em seu aspecto mais trivial e nos recorda da moralidade. Afinal, embora desejem, enquanto indivíduos, o posto da supramoralidade, quem de fato segue além do bem e do mal, no Estado constitucional, é tão somente a liberdade.

  • * Georges Abboud é livre-docente, professor de Direito Processual Civil da PUC-SP e de Direito Constitucional do IDP, advogado e consultor jurídico.