Ana Luisa Saliba - Conjur

Não existe margem de escolha de quem presta serviços para a Uber — ao contrário, o motorista adere a uma modalidade de subordinação por evidente necessidade, em que a empresa possui poder controlador, fiscalizador e de comando suficiente para contar com uma prestação de trabalho humano altamente estabilizada e controlada.

Com esse entendimento, a 8ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região reconheceu existência de relação de emprego entre um motorista e a Uber do Brasil. O Tribunal também condenou a empresa ao pagamento de indenização por danos sociais (dumping social).

No caso, um motorista que trabalhou na Uber afirmou ter sido dispensado sem justa causa. Por isso ingressou com ação trabalhista para que fosse reconhecido o vínculo de emprego e para receber os valores decorrentes da dispensa. Em primeira instância os pedidos foram julgados improcedentes.

Tero Vesalainen / Shutterstock

Em sede de recurso, o relator, desembargador Marcelo Ferlin D’Ambroso, pontuou que a subordinação e a não eventualidade separam o serviço prestado mediante salário do trabalhador autônomo, porque em ambos os casos não se pode excluir a pessoalidade e a onerosidade.

Para o magistrado, como a sentença de primeira instância já havia reconhecido a pessoalidade, a onerosidade e a não eventualidade, bastaria analisar a presença da subordinação.

Nesse sentido, entendeu que ocorreu a subordinação, uma vez que as atividades desenvolvidas pela pessoa trabalhadora se prestam a promover o objetivo social da empresa. O fato de o trabalhador usar recursos próprios para prestar serviços (veículo, manutenção e combustível), por si só, não atesta qualquer independência na relação, pois tais condições são impostas pela Uber.

Além disso, D’Ambroso ressaltou que a empresa define quem lhe presta serviços, por qual período, e os motivos pelos quais os motoristas podem ser excluídos pela plataforma (ainda que “terceirize” a avaliação dos motoristas aos usuários do aplicativo), além de ser responsável pela remuneração do trabalho.

Assim, a chamada “uberização” das relações de trabalho, que pretensamente criaria novas formas de relações de trabalho, na verdade possui exatamente os mesmos elementos que compõem uma relação de emprego, pontuou o desembargador.

“Obviamente, a forma de prestação de serviços não desnatura a essência da relação de emprego, fundada na exploração de trabalho por conta alheia. Por outras palavras, não há nada de novo nisso, a não ser o novo método fraudulento de engenharia informática para mascarar a relação de emprego”, completou.

Nesse contexto, o relator concluiu que estão plenamente configurados os requisitos para reconhecimento de vínculo de emprego, inclusive porque há precedentes no mesmo sentido.

Segundo o magistrado, também está caracterizada a hipótese de dumpingsocial, consistente “na prática reiterada pela empresa do descumprimento dos direitos trabalhistas e da dignidade humana do trabalhador, visando obter redução significativa dos custos de produção, resultando em concorrência desleal”.

Por essa prática causar danos aos trabalhadores e à sociedade em geral, D’Ambroso condenou a parte demandada ao pagamento de indenização por dano social, no valor de R$ 1 milhão, a ser revertida a entidade pública e/ou filantrópica a critério do Ministério Público do Trabalho.

“Em outros países também começaram a surgir decisões desta mesma natureza. É um tema novo e que será discutido cada vez mais no Brasil. Vai chegar nos tribunais superiores em breve”, afirma Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do TJ-SP, especialista em Direitos Humanos e colunista da ConJur.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Outro lado

Em manifestação enviada à ConJur, a Uber esclarece que não teve acesso à decisão. “Causa estranheza que o documento tenha sido divulgado à imprensa antes de ser cumprido o rito jurídico de dar ciência às partes sobre o resultado de um processo judicial.”

“Assim que tiver ciência, a empresa irá recorrer da decisão, que representa um entendimento isolado e contrário ao de outros casos já julgados pelo próprio Tribunal Regional e pelo TST (Tribunal Superior do Trabalho), o mais recente deles no mês de maio.”

“Ao recusar acordo firmado entre as partes, a 8ª Turma passa por cima da vontade expressa de seus jurisdicionados e desconsidera completamente a diretriz da Justiça do Trabalho de preferência pela solução consensual de conflitos. O recurso da Uber também apresentará todos os fatos necessários para a anulação da autuação, aplicada pela Turma sem que houvesse nenhum pedido no processo e baseada em argumentação aparentemente de cunho ideológico.”

“Nos últimos anos, as diversas instâncias da Justiça do Trabalho vêm construindo sólida jurisprudência confirmando o fato de não haver relação de emprego entre a Uber e os motoristas parceiros, apontando a inexistência de onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação, requisitos que configurariam o vínculo empregatício. Em todo o país, já são mais de 1.270 decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho neste sentido, sendo que não há nenhuma decisão consolidada que determine o registro de motorista parceiro como empregado da Uber.”

“Os motoristas parceiros não são empregados e nem prestam serviço à Uber: eles são profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação digital oferecida pela empresa por meio do aplicativo. Os motoristas escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento.”

“Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação de exclusividade na contratação da empresa e não existe determinação de cumprimento de jornada mínima.” 

“O TST já reconheceu, em quatro julgamentos, que não existe vínculo de emprego entre a Uber e os parceiros. No mais recente, a 5ª Turma afastou a hipótese de subordinação na relação do motorista com a empresa uma vez que ele pode ‘ligar e desligar o aplicativo na hora que bem quisesse’ e ‘se colocar à disposição, ao mesmo tempo, para quantos aplicativos de viagem desejasse’.”

“Em março, a 4ª Turma decidiu de forma unânime que o uso do aplicativo não configura vínculo pois existe ‘autonomia ampla do motorista para escolher dia, horário e forma de trabalhar, podendo desligar o aplicativo a qualquer momento e pelo tempo que entender necessário, sem nenhuma vinculação a metas determinadas pela Uber’.” 

“Entendimento semelhante já foi adotado em outros dois julgamentos do TST em 2020, em fevereiro e em setembro, e também pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamentos desde 2019 — o mais recente foi publicado há algumas semanas.”

Clique aqui para ler a decisão
0020750-38.2020.5.04.0405